Sobre 'Poder e Dinheiro'

O Grupo Translatio Studii apresenta texto produzido pelo teórico português João Bernardo, no qual o autor esclarece os motivos que o levaram a escrever Poder e Dinheiro:  do Poder Pessoal ao Estado Impessoal no Regime Senhorial, Séculos V-XV, obra em três volumes publicada entre 1995 e 2002.  

Essa obra de João Bernardo tem servido de base para uma das atividades que temos mantido, os encontros de leitura coletiva e debate dos capítulos de Poder e Dinheiro transmitidos semanalmente em nosso canal no YouTube. 

Leia, a seguir, o texto que nos foi gentilmente cedido por João Bernardo para divulgação na página  do Translatio Studii.


Sobre o Poder e Dinheiro

Em 1975 e 1976, durante a revolução em Portugal, escrevi uma longa análise de O Capital, intitulada Marx Crítico de Marx (3 vols., Porto: Afrontamento, 1977). Tratava-se de aplicar ao marxismo, neste caso à obra central de Marx, a perspectiva aberta pelo marxismo. É que a quase totalidade dos marxistas deixa de ser marxista quando fala do marxismo. Eu pretendi agir de maneira diferente — aliás, continuo a pretendê-lo — aplicando o marxismo ao marxismo. Não importa aqui referir as principais conclusões a que cheguei naquela obra nem o eixo de análise que prossegui. O que agora interessa é que, paralelamente, dois aspectos me incomodaram muito em O Capital.

Um desses aspectos foi a ausência de reflexão sobre o papel do Estado no capitalismo. Marx resumiu o capitalismo a um case study, a Grã-Bretanha, e limitou-se a uma óptica particular desse case study, a visão manchesteriana, estritamente livre-concorrencial, do capitalismo britânico. Ora, nessa época e ali bem perto, do outro lado do Canal, Marx dispunha de um exemplo prático muito diferente, o da França, onde as reformas instauradoras do capitalismo nunca dispensaram o Estado. Esta situação era mais notória ainda no Segundo Império, com a participação dos saint-simonianos. Os efeitos práticos deste alheamento do Estado no estudo do capitalismo eram para mim evidentes quando os marxistas consideravam que os regimes capitalistas de Estado que eles mesmos instauravam não eram capitalistas. Mas por que motivo Marx optara pelo caso britânico e pelo mito manchesteriano?

A questão é, na verdade, ainda mais profunda. Naquela época havia dois grandes economistas a quem Marx podia recorrer, Adam Smith e Ricardo. Ora, foi precisamente Ricardo, o mais estritamente manchesteriano, que Marx tomou como modelo, em detrimento de Adam Smith, para quem a economia era um prolongamento da reflexão sobre o jogo das instituições, que constituíra o seu interesse dominante. À primeira vista, porém, o Marx da luta de classes estaria muito mais próximo do Smith das instituições do que do Ricardo da aritmética manchesteriana. Então, porquê aquela escolha? Nunca consegui deslindar esta questão e, se o tivesse conseguido, teria conseguido explicar muita coisa.

O outro aspecto que me incomodou muito em O Capital foi o tratamento do dinheiro no capitalismo. Marx tinha uma visão retrógrada do dinheiro, adaptada ao mercantilismo, mas não ao capitalismo. Ao considerar John Law como um burlão, em vez de um visionário, e basta este exemplo, Marx comprometeu toda a análise do dinheiro. No Marx Crítico de Marx dediquei a essa questão um curtíssimo capítulo, oito páginas, embora ela esteja subjacente a alguns dos aspectos principais da obra, como a crítica à noção da transformação de valores em preços e ao modelo de distribuição da mais-valia. Mas o tratamento que Marx fez do dinheiro no capitalismo incomodou-me a tal ponto que decidi aprofundar a questão.

Para isso, pareceu-me indispensável estudar o que fora o dinheiro antes do capitalismo. Se eu considerava que Marx se apegara a uma noção retrógrada de dinheiro, era-me necessário verificar em quê essa noção era retrógrada. Comecei então a estudar o dinheiro no mercantilismo, nos séculos XVII e XVIII, mas depressa entendi que aquelas formas pecuniárias eram o resultado de longos processos de evolução. Eu teria de recuar muito no tempo. Mas, recuar até quando? Como hipótese de partida, pensei que o Império Romano do Ocidente fora tão completamente desestruturado que certamente não haviam perdurado as suas formas monetárias. Seria necessário, então, começar o estudo pelos merovíngios, os anglo-saxões e os visigodos. Foi o que fiz, e em 1978 lancei-me a um trabalho que me custou vinte e quatro anos a completar.

Previno desde já. Usar Marx para estudar a Idade Média é como usar Galeno para praticar neurocirurgia. Assim como os marxistas prescindem do marxismo quando abordam o marxismo, também prescindem da perspectiva histórica quando usam as análises históricas de Marx. A Idade Média que Marx conhecia não era a que se conhecia quando eu comecei a estudá-la. Marx simplesmente falou de outra coisa. Também a Idade Média que hoje se conhece difere daquela que era conhecida quando foi publicado o último volume de Poder e Dinheiro. Sobretudo a arqueologia trouxe novos dados e a história comparada possibilitou outras percepções. A história é o estudo do passado, mas o próprio estudo altera o objecto de estudo.

Felizmente, na pesquisa bibliográfica deparei muito cedo com as Settimane di Studio do Centro Italiano di Studi sull’Alto Medioevo, que me proporcionaram uma verdadeira imersão na problemática que eu pretendia. A partir daí, foi seguir os fios da meada e prosseguir de autor em autor, de obra em obra. Foi esta a razão por que escrevi o Poder e Dinheiro. Não sou medievista nem pretendi sê-lo. Quis apenas esclarecer um problema que julgo essencial para a compreensão da história contemporânea.

Ao fazê-lo, no entanto, era inevitável que me preocupasse também o outro motivo de descontentamento que me deixara o estudo crítico de O Capital. Por isso, à medida que ia estudando a questão do dinheiro no regime senhorial, ia também percebendo a sua relação com a questão do poder — já que o Estado não é senão uma das formas do poder. Afinal, se as duas questões me haviam incomodado, alguma relação íntima devia existir entre elas. No Poder e Dinheiro procurei mostrar essa relação, a passagem do poder pessoal, que exigia a moeda cunhada ou o boi usado como dinheiro (não quero ser sexista, a vaca também), ao Estado impessoal, o único que podia gerar as formas fiduciárias do dinheiro. E se foi a evolução das formas de família que subtendeu todo esse processo, no momento em que terminei a obra tinha perante mim um horizonte muitíssimo mais vasto, o de toda a antropologia e de toda a história enquanto tecida pela transformação das formas familiares.

Recordo que o meu ponto de partida fora a tentativa de esclarecer uma questão, ou duas, relativas à história do capitalismo. Ora, o capitalismo nasceu na Europa e foi este o motivo que me levou a estudar a Idade Média europeia. O capitalismo poderia ter nascido na China e poderia ter nascido no Império Otomano, sobretudo no Egipto. Mas nasceu primeiro na Europa e, por isso, estagnaram os processos que levariam à sua génese noutros lugares e o capitalismo que depois aí se desenvolveu, tal como se desenvolveu no resto do mundo, partiu de outro centro de irradiação. Teria sido, então, um capitalismo europeu a dominar um mundo sofredor? Pelo contrário. A Europa nunca existiu, quero dizer, nunca existiu uma cultura autóctone que tivesse hegemonizado aquilo a que depois se chamou o continente europeu. Houve, culturalmente, três áreas que repartiram o continente europeu. Uma área mediterrânica, a mais dinâmica, que se ligava à Pérsia e ao Mar Negro. Uma área de Leste e Nordeste, que se ligava ao Báltico e às rotas das estepes, até aos confins da China. E uma área céltica, atlântica. Quando essas três áreas se unificaram, não foi a Europa que as unificou, foi o capitalismo. Não se tratou de uma cultura europeia ou eurocêntrica, mas de uma cultura capitalista que desde início tendeu a universalizar-se. Mas não teremos, ainda aqui, um desvio de visão? Não seriam igualmente universais e universalizantes as sociedades e as economias pré-capitalistas?

Segundo alguns estudiosos, as sociedades humanas decorrem do facto de nós sermos os grandes prematuros. Há outros animais que necessitam de um período de auxílio para sobreviverem, mas nenhum exige, como nós, seis anos para ser capaz de dar conta da vida, e o dobro para procriar. As sociedades humanas teriam resultado, assim, dessa peculiaridade da natureza, porque para os humanos não bastam os cuidados de uma fémea e um macho durante pouco tempo. Não bastam as famílias, e são indispensáveis relações inter-familiares.

Quando terminei o Poder e Dinheiro entendi que o regime senhorial era só um pedaço de algo muito mais vasto no espaço e muito mais prolongado no tempo. Eu chamara-lhe regime, porque desde início não me pareceu que tivesse as características necessárias a um modo de produção. Mais tarde, episodicamente, ao longo dos anos, procurei alinhavar algumas hipóteses e alguns factos que indicassem o que poderia ser esse modo de produção, do qual o regime senhorial fora só uma faceta. Os resultados desse trabalho, uma mera tentativa, encontram-se aqui (http://www.niepmarx.blog.br/revistadoniep/index.php/MM/article/view/312) e aqui (http://www.niepmarx.blog.br/revistadoniep/index.php/MM/article/view/333).

Mas, como disse há pouco, o meu objectivo durante aquele quarto de século de trabalho não foi a Idade Média nem a história antiga, mas a tentativa de compreender alguns aspectos cruciais da nossa época, o dinheiro e o Estado. Neste sentido o Poder e Dinheiro influenciou decisivamente todas as minhas análises posteriores da história contemporânea. Por um lado, influenciou a minha análise do Estado. Por outro lado, influenciou a minha análise do dinheiro no capitalismo, oposta aos lugares-comuns que, de tão difundidos, são hoje considerados verdades indesmentíveis. Esse estudo da época medieval ajudou-me naquilo que fundamentalmente pretendo — manter um pensamento crítico.

13 de Novembro de 2020

João Bernardo




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