Translatio Entrevista - Douglas Mota Xavier de Lima (UFOPA)


Dentre as nossas atividades, nós do Translatio Studii também temos realizado entrevistas com colegas pesquisadores da área de História Medieval.

A seguir, leia a entrevista concedida pelo Prof. Dr. Douglas Mota Lima (UFOPA).



USO DE TECNOLOGIAS NO ENSINO E NA PESQUISA EM HISTÓRIA MEDIEVAL: ENTREVISTA COM DOUGLAS MOTA XAVIER DE LIMA

Concedida a Hayanne Porto Grangeiro e
Nathália de Ornelas Nunes de Lima1

Apresentação:
Douglas Mota Xavier de Lima é Professor Adjunto da Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA), campus Santarém, na área de História Antiga e Medieval. Bacharel e licenciado em História pela Universidade Federal Fluminense (2009), obteve pela mesma universidade os títulos de Mestre (2012) e Doutor (2016) em História pelo Programa de Pós-graduação em História (PPGH-UFF). Entre seus principais temas de pesquisa, encontram-se os relacionados ao poder e à sociedade na Baixa Idade Média Ibérica – com destaque para as relações diplomáticas e as viagens medievais –, além das relações entre Cinema e História, Histórias em Quadrinhos e, ainda, Ensino de História e uso de tecnologias na educação.
Antes de ingressar no quadro docente da UFOPA, atuou como professor do Ensino Fundamental na rede particular e pública do Rio de Janeiro (2009-2014) e como professor-tutor no curso de Licenciatura em História à distância da UNIRIO, no convênio entre o CEDERJ e a Universidade Aberta do Brasil (UAB), entre os anos de 2013 e 2014. Atualmente é coordenador do LEGATIO: Grupo de Pesquisa, Ensino e Extensão em História Medieval e Ensino de História e membro do Vivarium – Laboratório de Estudos da Antiguidade e do Medievo/Núcleo Norte e do Scriptorium – Laboratório de Estudos Medievais Ibéricos da UFF.
Nesta entrevista, concedida ao Translatio Studii, o Prof. Dr. Douglas Mota Xavier de Lima reflete sobre o uso de tecnologias no ensino e na pesquisa em História Medieval a partir de sua própria experiência como docente no ensino superior público e no decorrer de sua trajetória acadêmica. Durante a entrevista, o professor destaca, entre outros pontos, certos aspectos de sua vivência como professor-tutor em uma graduação EAD e como o uso de ferramentas e recursos tecnológicos nas disciplinas por ele ministradas na UFOPA – fóruns de discussão online, vídeos em plataformas como o YouTube e os podcasts, por exemplo – já são há algum tempo elementos importantes para o processo de ensino-aprendizagem em suas turmas. Ademais, aponta como a disponibilidade de fontes em meios digitais tem sido um aspecto relevante e facilitador para o desenvolvimento da pesquisa histórica na atualidade e, em especial, para área de História Medieval.
Neste ano de 2020, com o avanço da pandemia de Covid-19 e as medidas de isolamento social, que incluem a suspensão de atividades presenciais em escolas e universidades, o debate sobre o uso de tecnologias na educação e a adoção da modalidade EAD – já previstos em documentos como LDB/96 e os PCNs – foi impulsionado, mobilizando as atenções não apenas de educadores, pesquisadores e gestores públicos, mas dos meios midiáticos e de diversos setores da sociedade. Nesse sentido, consideramos que aspectos como os destacados pelo professor Douglas Mota na entrevista a seguir trazem relevantes contribuições tanto para o Ensino de História e a formação de professores como para o debate acerca das políticas educacionais adotadas nos últimos anos no Brasil.

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Translatio Studii: Em qual situação foi a sua primeira experiência com o uso de ferramentas tecnológicas no ensino de História Medieval? E como foi a recepção dos discentes em relação a este material? Comente um pouco a respeito.

Douglas Mota: Olá! Em primeiro lugar, gostaria de agradecer o convite e expressar aqui a minha saudação a todos os colegas do Translatio Studii. Em relação a minha primeira experiência com o uso de ferramentas tecnológicas no ensino de História Medieval, destaco a experiência que eu tive no CEDERJ, no Rio de Janeiro, onde fui tutor entre 2013 e 2014 no curso de licenciatura semipresencial. O CEDERJ é um consórcio das universidades públicas do Rio de Janeiro com a Universidade Aberta do Brasil (UAB) e eu fui tutor presencial em Cantagalo. Através dessa experiência eu tive contato com a questão dos fóruns, então, por mais que eu fosse tutor presencial, eu atuava em relação a turma também apoiando as atividades virtuais. Isso foi importante porque foi o meu primeiro contato efetivo com discussões do EAD. Ela foi importante para influenciar a minha prática atual, mas eu vou concentrar na experiência que eu tenho na Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA), em Santarém.
Eu ingressei na UFOPA em 2014 – destacando que entre 2014 e 2016 eu estava desenvolvendo a minha tese de doutorado, então acabei me dividindo entre as atividades da universidade e a escrita da tese, isso acabou limitando algumas variações e modificações do curso e acabei seguindo um formato mais tradicional. Após a minha defesa, em 2016, eu passei a flexibilizar o formato desse curso, buscando novas opções de avaliações e novas metodologias de ensino. Uma delas passa por modificar o processo avaliativo das turmas e, nesse caso, foi que entrou o uso de ferramentas tecnológicas. Eu já usava em sala materiais desse tipo, como algumas mídias, mapas interativos etc., mas eu passo a usar de fato esses recursos com mais intensidade em 2016. Neste caso, gostaria de destacar o uso de fóruns de discussão, pois essa é uma ferramenta disponível no SIGAA (Sistema Integrado de Gestão de Atividades Acadêmicas) e comumente utilizada nos cursos EAD no intuito de mobilizar os alunos, de discutir e aprofundar determinados temas. Eu passei a utilizá-la com as minhas turmas em 2016 e, a priori, o feedback foi muito bom. Os alunos que não conseguiam participar na sala de aula, às vezes por timidez ou até mesmo pelo tamanho das turmas – em geral, leciono para turmas que variam de 40 a 60 alunos –, através do fórum, como todos eram obrigados a participar, eu conseguia ouvir essa parte da turma que não costumava se manifestar com frequência nas aulas presenciais. Em relação à avaliação por parte do docente, eu fiquei muito satisfeito com a questão do conteúdo. Normalmente eu apresentava uma questão norteadora, alguns textos para subsidiarem o debate e depois seguia mediando a discussão dos alunos. Por que eu disse a priori? Porque algo que eu percebi e me incomodou é que uma parcela da turma não participava. Então, se eu tenho uma turma de 40, entre 10 a 20 alunos não participavam da atividade e isso me criou um problema e me fez questionar como eu poderia estar integrando de forma mais efetiva esses alunos.
Eu gostaria de comentar também a respeito de uma outra experiência sobre a utilização de ferramentas tecnológicas na minha prática de ensino, mais especificamente sobre o uso de recursos como vídeos, entrevistas e reportagens disponíveis no YouTube. Para esclarecer e contextualizar um pouco essa minha fala ao leitor, eu sou carioca, formado pela Universidade Federal Fluminense e uma das coisas que mais me marcavam na graduação era o acesso à biblioteca. Eu frequentava a biblioteca da UFF (BCG) no meu cotidiano, assim como outras bibliotecas do Rio de Janeiro e até, por algumas vezes, visitei a biblioteca da USP apenas para acessar alguns materiais, por isso senti um baque ao perceber que o nosso acervo aqui na UFOPA, que é uma universidade relativamente nova (criada em 2009), em relação à História é muito restrito e que somos a única instituição da região. Em pensar que, por exemplo, as outras grandes instituições daqui, como a UFAM em Manaus e a UFPA em Belém, ficavam distantes e inviabilizando por vezes essa circulação de obras e textos.
Um outro aspecto que gostaria de destacar é que na minha prática docente, entre 2009 quando, mesmo ainda na graduação, ingressei no Ensino Básico e fiquei até 2014, sempre usei muitos materiais de vídeos, filmes, animações, séries de TV e isso fazia parte das minhas discussões. Era muito comum falarmos sobre os filmes com temáticas de História Medieval e como alguns, em especial, representavam o medievo na indústria cinematográfica. Este foi um segundo baque que levei nas primeiras turmas que eu lecionava aqui na UFOPA. Elas não tinham tanto contato com esse universo fílmico de uma forma geral, então isso foi um elemento que me fez repensar a utilização desse recurso. A conjunção desses elementos fez com que eu aprofundasse na plataforma SIGAA a sugestão de livros, de filmes, entrevistas e conferências online, além da divulgação de fontes e criasse um grupo no Facebook para estarmos trocando coisas rápidas e divulgando eventos, publicações e materiais. Então essas ferramentas, mesmo que aparentemente soltas, têm sido parte da minha experiência docente.

Translatio Studii: Após esta experiência, você permaneceu utilizando tais recursos em suas aulas? Poderia citar uma avaliação de um antes e depois da inclusão destes novos materiais em sua rotina docente?

Douglas Mota: Acredito que é uma prática de todo professor, o que a gente aprende lá nas matérias de didática: a gente faz um planejamento, executa, adapta, recebe o feedback, vai reavaliando e sempre buscando melhorar. Então, como eu comentei, o meu problema para a avaliação do fórum era exatamente o fato de uma parcela da turma não estar participando. E aí, conseguindo chegar mais próximo, ouvindo alguns alunos, eu percebi que muitos deles tinham dificuldade de acesso, e essa dificuldade passava por não conseguir acessar ou não saber como fazer. Alguns até tinham computador, outros tinham um celular com uma conexão, usavam os espaços da universidade, como laboratórios, para conseguir o acesso, porém, não sabiam como fazer com detalhamento no SIGAA. Então, passei a investir muita atenção nessa preparação da avaliação.
Fiz um tutorial explicando o que é o fórum com mais detalhes, exemplos de postagens, como cada um deveria se portar, onde entrar, como publicar, como comentar, como inserir links, e por aí vai. Isso foi importante. Paralelamente, e que também foi importantíssimo, com auxílio de uma monitora em 2017, fizemos uma pesquisa junto aos alunos do curso para entender o perfil do uso da internet. Porque, novamente, por mais que eu soubesse que os alunos tinham essa dificuldade, eu queria entender qual era o perfil deles e, nesse sentido, foi possível perceber que a maior parte dos alunos tinha apenas o acesso pelo celular, pelo smartphone, e que usavam computador geralmente apenas na universidade. Nesse sentido, tinham dificuldade de usar algumas ferramentas online, até por causa do tamanho dos arquivos ou da capacidade de leitura nas telas pequenas dos smartphones. A partir disso, procuramos meios de reorientar esses usos. Desde então, acho que os fóruns melhoraram significativamente, a gente tem conseguido alcançar agora quase a totalidade das turmas participando.
Outra mudança foi organizar melhor o fluxo de participação. Inicialmente, eu oferecia uma questão norteadora para a turma e nós debatíamos, só que alguns alunos acabavam participando de maneira muito repetitiva. E então eu passei a concentrar nos últimos fóruns com as turmas numa divisão. Eu divido a turma, cada parte tem uma tarefa em determinado fórum, geralmente são dois fóruns ao longo do semestre. E, nesse movimento das diferentes tarefas, por exemplo, um dos fóruns que nós tivemos foi sobre o uso de jogos eletrônicos, games, para o ensino de História Antiga. Então, um dever de uma parte da turma era apresentar um jogo, poderia ser dos mais diversos, desde que abordasse temáticas da Antiguidade. Eles tinham que apresentar considerações sobre o jogo em diálogo com a bibliografia que eu sugeri ou de outras que eles pesquisassem. Feito isso, eles levantariam problemas. E a outra parcela da turma estaria entrando ali para debater essas problemáticas levantadas pelo primeiro grupo. Então, isso foi também muito interessante porque organizou melhor, potencializou a avaliação.
Eu acrescento como exemplo dessa maior inserção das ferramentas tecnológicas na minha prática docente a produção de podcasts. Em algumas reportagens fala-se que o Brasil vive hoje a “era de ouro” dos podcasts. Considero que é fundamental que na formação básica, na formação inicial, o futuro docente pense, problematize, questione e apreenda sobre essas ferramentas. Assim, em diferentes avaliações, os alunos têm produzido podcasts. Em geral, o resultado é muito bom. Nós já tivemos um trabalho em que os alunos fizeram uma avaliação de uma novela da Globo, para o uso na Educação Básica, aquela novela que se ambientava na Idade Média [Deus salve o rei (2018)]. Nós já tivemos podcasts sobre temas puramente acadêmicos de História Medieval, como educação no medievo, outros mais críticos, sobre como o medievo vem sendo usado pela política atual. Os alunos têm se apropriado da ferramenta e, em geral, o resultado tem sido muito positivo. Até mesmo por permitir a eles produzir, dar voz, aprofundar determinados conteúdos. Isso mostra um pouco da liberdade que eu tenho a partir do momento em que aboli as provas escritas e passei a flexibilizar as avaliações.
Outra coisa que eu lembraria – e essa tendência penso que tem tudo a ver com o que eu venho falando – é a questão de estarmos buscando uma rede. Alguns colegas têm gravado algumas conferências, alguns podcasts para as minhas turmas. Por exemplo, já tive o Prof. Josué Berlesi (UFPA) falando sobre Israel Antigo, o Prof. Otávio Vieira Pinto (UFPR) falando sobre a Pérsia Sassânida, a Prof.ª Mariana Trevisan (UNINTER) falando sobre gênero e família na Baixa Idade Média, que são temas que não são da minha especialidade, mas que são importantes para os alunos conhecerem novos pesquisadores, novas referências e terem formas e ferramentas para esse aprofundamento. Então, essa também tem sido uma experiência muito válida, os alunos gostam.
Isso tudo enfrentando ainda as limitações técnicas. A internet no Brasil não é boa, na região Norte ela é ainda pior. Felizmente, na UFOPA nós temos uma das melhores conexões de Santarém, então os alunos conseguem acessar muita coisa na universidade. Por fim, lembro que atualmente estou desenvolvendo com a aluna Rosiângela Campos um projeto sobre podcasts de história, para oferecer um catálogo para os nossos alunos. O nosso PPC do curso aponta para isso, de que os nossos egressos têm que ter a tecnologia na educação como um elemento importante. Mas, de fato, nós não temos nenhum componente curricular para essa discussão. Então, eu venho buscando inserir essas discussões nas disciplinas de Antiga, Medieval e Moderna e o resultado tem sido muito bom.

Translatio Studii: Nos cursos de mestrado e o doutorado realizados no PPGH-UFF seu principal tema de investigação foi a diplomacia nos reinos tardo-medievais, especialmente as relações diplomáticas travadas durante a dinastia portuguesa de Avis e as viagens realizadas pelo Infante D. Pedro, o “Infante das Sete Partidas”. Durante sua pesquisa, alguma fonte relacionada à diplomacia chamou em especial sua atenção? Se sim, que características particularizam essa fonte (gênero textual, suporte etc.) e que a assemelham e/ou diferenciam de meios e tecnologias de comunicação utilizadas hoje pelos diplomatas (por exemplo, redes sociais como Twitter e Facebook)?

Douglas Mota: De fato, desde a graduação eu tenho pesquisado o medievo português do século XV e eu diria que nessa questão das fontes há até mesmo uma diferença entre colegas que realizaram pesquisas no mesmo período, visto que, em geral, as pessoas trabalhavam com uma fonte ou uma obra e desde o mestrado escolhi trabalhar com um corpus documental bem variado, por ser uma necessidade colocada pelo estudo das viagens de D. Pedro e acentuada quando passei a pesquisar sobre a diplomacia medieval portuguesa.
Num primeiro momento, cada fonte utilizada na minha pesquisa tem uma contribuição ao tema. Por exemplo, as crônicas, que fazem parte de um gênero textual que permeia a história e a literatura, são importantes para pensar questões de poder e a memória oficial da história dos reinos, mas trazem muitas alegorias e metáforas características dos textos literários. Ao usar as crônicas para a questão da diplomacia foi interessantíssimo ver a variação dos termos entre o que se é registrado na crônica e o que é encontrado em documentos diplomáticos, como o memorando. Este era um documento que vinha da chancelaria e que dava, com clareza, os poderes que os embaixadores tinham para realizar as suas negociações. Assim, era possível distinguir juridicamente a figura do embaixador – viajante diplomático que tem poder de negociação – dos demais que eram mensageiros. Todavia, nas crônicas, por vezes essas figuras se sobrepunham e todos eram referenciados com embaixadores. Mesmo em outros documentos narrativos, todos os componentes da mesma comitiva, mesmo aqueles que não tinham poder de negociação, também são chamados como tal. Isso mostra um pouco a diferença de abordagem para cada fonte.
Como outro exemplo de fonte, eu poderia citar as narrativas de viagens. Ao longo da dissertação e da tese, consegui reunir várias narrativas sobre o século XV português, então seria interessante pensar como que esses viajantes relatavam certas práticas diplomáticas, como o cerimonial, a recepção, a audiência, as festas, as bebidas, as comidas, e como era feita a caracterização do outro nessa documentação. Um movimento interessante nessa minha relação com os livros de viagem foi exatamente pensar o que seria a singularidade desses textos frente a literatura de viagem mais ampla no período medieval, como o Maravilhoso de Marco Polo e os registros de Mandeville. Os textos com os quais eu trabalhei são relatos de viagens, em que se tem elementos mais descritivos e ligados a uma certa cronologia.
Para fazer o link sobre semelhanças e diferenças em relação à comunicação atualmente, irei concentrar a minha resposta em um documento que é interessantíssimo e se trata de um relato de espionagem de um servidor da coroa de Aragão. No início do século XV, Portugal vive uma guerra de sucessão contra Castela, então, por mais que alguns tratados de trégua e paz tivessem diminuído os combates e conflitos entre as duas partes, havia uma tensão entre ambos os reinos nesse período. Por volta de 1411 é assinado um tratado de paz entre Portugal e Castela, visando ser perpétuo e confirmado apenas na maioridade do rei castelhano. A partir de 1411 se inicia uma discussão, que se intensifica na Corte portuguesa, a respeito de possíveis destinos de uma empresa militar. Inúmeros destinos são postos em discussão e o escolhido é o ataque à praça marroquina de Ceuta, localizada no norte da África, ocorrido em 1415. Este episódio é considerado por muitos como primeiro marco da expansão marítima portuguesa.
Ao longo dessa preparação da armada para a expedição foi importante mobilizar o reino, produzir armas, construir e abastecer os navios e isso fez com que se tornasse impossível que esta preparação fosse camuflada plenamente, afinal de contas, toda essa estrutura militar estava à disposição daqueles que frequentavam as grandes cidades. No caso dos relatos das crônicas, cartas e memorandos, é possível perceber que os reinos vizinhos – Castela, Aragão e Granada – ficaram muito apreensivos em relação a serem o possível alvo do ataque. O rei de Aragão, Fernando de Antequera, envia uma série de embaixadas à Portugal a fim de averiguar se ele seria o destino do ataque, mas ele não fica satisfeito com nenhuma das respostas que recebe dos reis portugueses e decide enviar um espião, Rui Dias, a Portugal para colher informações. Eu pude acessar através da Monumenta Henricina, que é uma coletânea de fontes importante sobre o século XV português, dois relatórios bem detalhados que expõem essas informações a respeito desse espião. Ali é relatado como ele chegou a Corte portuguesa, andou pelo reino, foi falar diretamente com o rei e viu os infantes portugueses, apresentou a embaixada e teve que criar um argumento para conseguir permanecer mais tempo no reino – ele diz que perdeu a carta da rainha e que já havia solicitado que a carta fosse reenviada e, enquanto isso, pede para ficar mais algumas semanas em Portugal.
Esse é um tema que eu venho tentando explorar no último ano – e pretendo até fazer um pós-doutorado nesse eixo –, que é a questão dos rumores e a circulação de informações. Esse é um eixo que cria semelhanças e diferenças importantes para o mundo hoje. Temos atualmente uma estrutura diplomática institucionalizada e um serviço de inteligência muito claro. Sabemos até mesmo dos problemas dessa inteligência para os nossos direitos como cidadãos, como o acesso de conteúdos confidenciais de contas de e-mail, fotos, áudios etc., seja por meio de mecanismos de inteligência oficiais ou hackers. Contudo, mesmo que no medievo essa questão institucionalizada não estivesse posta, havia uma intensa espionagem ou, como uma autora italiana coloca [Isabella Lazarinni], há uma politização da informação para esses poderes. Desta forma, cada vez mais a produção, o controle e a gestão do que se fala e do que se informa era importantíssimo. Nesses relatórios que eu estou citando é possível ver espião tentando descobrir o local de ataque escolhido pelos portugueses e, em certo momento, um membro da corte portuguesa aparece mostrando alguns documentos que induzem o espião a uma informação equivocada. Em vários momentos o espião fica sem conseguir informar qual é de fato o destino da armada. Em um cenário atual marcado pelas fake news, ou seja, de informações inverídicas, é importante pensar também que, por vezes, os poderes do século XV e, especialmente, no caso do meu estudo, o poder régio português, mobilizavam o deslocamento de embaixadas duplas, como foi o caso da embaixada enviada à Sicília (c.1410-1412) para negociar um casamento que, na verdade, o seu objetivo real era mapear as defesas de Ceuta e, portanto, uma espionagem. O caso de Ceuta é um exemplo dentre vários outros em que o poder régio se utilizou de certas ações para gerar o rumor.
Nessa mesma linha dos rumores, houve um documento importante ao qual tive acesso. É um memorando do rei D. Afonso V escrito em 1449, após a Batalha de Alfarrobeira, em que deixa claro a posição que seria oficial do reino a respeito deste episódio. Algo como “o infante D. Pedro morto em batalha era um traidor” fazia parte desse registro, que segue com uma série de acusações ao infante D. Pedro justificando a morte e a falta de tratamento com o corpo que foi largado no campo de batalha. Contudo, essa não é a memória que fica do período, posto que na principal crônica do período – a Chronica de el-rey D. Affonso V, de Rui de Pina, escrita entre fins do século XV e início do século XVI, ou seja, quase meio século após os acontecimentos –, o cronista critica o monarca, acusa os membros da Casa de Bragança como culpados pelas intrigas que resultaram na morte de D. Pedro e exalta profundamente a imagem desse que ficou conhecido como o Infante das Sete Partidas. Essa questão é bastante relevante para percebermos que nem sempre o poder régio, isoladamente, conseguia garantir um discurso oficial. E sim, que outras histórias que circulavam em paralelo conseguiram se firmar nessa versão que saudava a memória de D. Pedro, por exemplo, em Portugal no final do século XV.


Translatio Studii: Pesquisas como a sua têm relevado que nobres como o Infante D. Pedro, assim como vários outros integrantes da corte avisina e de outros reinos medievais, parecem ter se mostrado bastante receptivos aos conhecimentos de diversos campos do saber que se desenvolviam e circulavam pela Europa de então, tendo sido eles próprios responsáveis por relevante produção escrita sobre variados temas. Ainda hoje, porém, escutamos a associação do termo “medieval” a discursos considerados preconceituosos, anticientíficos ou obscurantistas, tais como especulações sobre terraplanismo, movimento antivacinas e a desqualificação de pesquisas científicas. O que você pensa sobre isso?

Douglas Mota: Sobre os preconceitos em relação à Idade Média, eu diria que, num primeiro momento, isso sempre nos incomoda como historiadores e como medievalistas, ouvir alguns absurdos ainda hoje, alguns elementos do senso comum por vezes proferidos por colegas da universidade. Mas o que mais assusta e nos alerta é essa questão dos movimentos negacionistas, antivacinas, terraplanistas... Acho que se, por um lado, isso nos dá um baque e pensamos “meu Deus, o que é que nós estamos discutindo?”, por outro lado, é um alerta de que temos que melhorar a nossa forma de comunicação, de divulgação das nossas pesquisas, o contato com o outro, esse outro tão perto da gente.
Como eu penso isso em relação à minha pesquisa? No último ano, tenho investido nas discussões do medievalismo, essas apropriações da Idade Média no mundo contemporâneo. Eu diria que o primeiro passo é reconhecer as raízes desse preconceito, historicizar o termo “Idade Média”, pensando não apenas na questão erudita dessa discussão, na questão acadêmica, mas também considerando que hoje não dá para falar de Idade Média sem considerar a Idade Média das mídias, a Idade Média da cultura de massa, que por vezes cria a imagem de um medievo violento, inculto, irracional, da barbárie e assim por diante.
Parece-me que, como nos aproximamos do medievo enquanto pesquisadores, temos a possibilidade de enxergar uma outra Idade Média, uma Idade Média das trocas culturais, que é um tema que vem crescendo nos últimos anos no Brasil. Eu fico muito contente de ver cada vez mais colegas tentando explorar uma história global da Idade Média, tirar a Idade Média de uma história muito nacionalista, o que sinaliza novos debates. No entanto, se, por exemplo, eu lembro do Infante D. Pedro, que é chamado de um pré-humanista português, da biblioteca régia do rei D. Duarte, que era seu irmão, das traduções, das discussões..., nós vemos ao longo da Idade Média o saber antigo greco-romano sendo constantemente revisitado e valorizado. Vemos, por exemplo, no século XV, para voltar ao meu universo de pesquisa, um membro da família régia portuguesa dizendo que eram um erro as guerras no norte da África, porque elas promoviam crises econômicas e mortes, que esse não era o melhor caminho de promover e avançar na fé cristã. Então, nós vemos uma Idade Média muito rica e diversa.
Mas o que eu penso sobre isso tudo? Eu diria que nós, medievalistas, estamos numa encruzilhada dos últimos anos no Brasil. Óbvio, ela sempre esteve posta, mas eu acho que ficou mais explícita nos últimos anos. Temos que ter muita cautela para falar da Idade Média. Porque, por um lado, nós nos acostumamos a defender, até por sermos uma área um pouco marginal no meio acadêmico brasileiro, nos acostumamos a falar dos grandes feitos medievais. E pouco temos explorado, de fato, questões, por exemplo, que norteiam as discussões do Translatio Studii, que são questões de dominação, exploração, esse mundo das relações sociais. Nós nos acostumamos a falar muito dos grandes feitos, da universidade medieval, dos grandes filósofos, dos valores, da cavalaria... E, agora, nós estamos em disputa sobre essa Idade Média. Acho que é importante também reivindicarmos uma Idade Média da diversidade, uma Idade Média do outro, dos conflitos, das disputas, pois nós vemos cada vez mais usos e abusos da Idade Média por discursos conservadores. Então, nesse cenário, acho que é fundamental estarmos não apenas atentos a questões negacionistas ou fora da ciência, mas ter o cuidado de recolocar o que seriam essas grandes invenções e desenvolvimentos do pensamento medieval, sem fazer com que esses elementos históricos se tornem instrumento para movimentos de homogeneidade cultural ou conservadores políticos.

Translatio Studii: Existe alguma ferramenta ou recurso tecnológico que você tenha utilizado mais em seu processo de pesquisa em história medieval nos últimos meses? Em caso afirmativo, poderia nos contar um pouco sobre sua experiência?

Douglas Mota: Em termos do uso de ferramentas e recursos tecnológicos para a minha pesquisa, eu diria que eles são um tanto limitados. Acho que o principal deles é a disponibilização de documentos online. Eu, por exemplo, não pude fazer um intercâmbio durante o mestrado ou a famosa “bolsa sanduíche” durante o doutorado, porque em um primeiro momento eu era professor do município do Rio de Janeiro e não tinha liberação; e quando me tornei professor universitário não dava mais tempo de concorrer ao edital, viajar e voltar para defender a tese. Isso fez com que a minha pesquisa toda fosse baseada em documentos impressos e online que foram acessados na internet, por edições compradas e por cópias escaneadas adquiridas na minha universidade e durante viagens que fiz a Portugal.
Nós temos muitos documentos disponíveis em sites institucionais, em bibliotecas de cada país e isso foi fundamental para a realização da minha pesquisa. Nos últimos meses diria que eu tenho usado bastante as sistematizações online. No momento estou escrevendo um texto sobre o medievalismo nos jogos de tabuleiro e, nesse sentido, é fundamental usar o recurso online do levantamento mundial do que foi publicado nos últimos anos sobre esse assunto. Não sobre esse tipo de estudo, mas sobre os jogos em si. Assim, esse uso constante da internet para ter acesso a materiais e a possibilidade de você juntar informações de diferentes países através de algumas plataformas acaba favorecendo bastante o levantamento de dados.

Translatio Studii: Para finalizar, não podemos deixar de falar sobre a EAD e os métodos de ensino adotados em virtude da pandemia do Covid-19. Diante do atual cenário que vivenciamos com as medidas de distanciamento social adotas em munícipios e estados brasileiros, nota-se que muitas escolas e redes de ensino, tanto privadas quanto públicas, passaram a adotar atividades a distância em turmas de ensino fundamental e médio. O que você pensa sobre isso? Você considera que há diferenças na utilização da EAD como modalidade de ensino na educação básica e no ensino superior?

Douglas Mota: Em primeiro lugar, eu diria que a minha resposta é influenciada por uma identidade: eu sou apaixonado pela sala de aula, eu adoro estar dentro de sala com os alunos, lecionando, debatendo. Para mim, a sala de aula é um espaço riquíssimo, potencial. Cada aula nos possibilita um universo de interações, que envolvem desde os elementos puramente do conteúdo da disciplina, mas também os afetivos. Então, o contato é fundamental. Acho que a sala de aula, as interações expressam talvez a parte mais bonita da humanidade do lecionar. E, diante disso, eu sou um professor que entende que a EAD tem um papel importante, mas não pode ser considerada um caminho. Até mesmo por como vem sendo conduzida no Brasil. Temos algumas experiências interessantes, mas, de fato, acho que ela não se compara com a experiência muito mais profunda e rica no ensino superior, por exemplo, que as universidades oferecem, principalmente as públicas. Então, acho que esse é um ponto de partida para a minha reflexão. Eu entendo que nesse momento de Covid, até mesmo para não parar tudo, foi buscado esse caminho. Mas, por mais que a gente entenda a opção, não se pode desconsiderar a realidade do nosso país, as desigualdades.
Na UFOPA, por exemplo, nós tentamos, a universidade assumiu essa posição. Durante duas semanas, nós fomos orientados a produzir materiais online. Eu busquei me adaptar, fazer videoaulas... Mas, não há comparação entre a videoaula e a aula presencial. Sem falar que não houve orientação de como seria, sugestões, nada. Cada professor fazia do seu jeito e o mais triste, e que é a realidade nua e crua, é que os alunos não conseguiam acessar. Muitos alunos disseram que voltavam para suas comunidades, alguns alunos indígenas – na UFOPA nós temos dois processos seletivos especiais, indígena e quilombola. Então, muitos alunos falavam: “Ah, professor, pô, voltei para minha comunidade. Só estou conseguindo sinal aqui raramente, um dia ou outro”. Não têm condição de acessar, não tiveram condição de entregar uma atividade, por exemplo, que eu tinha passado para uma outra semana. Eu acho que, de maneira correta, a universidade suspendeu essa determinação. Muitas universidades suspenderam, acho que por entenderem que não há motivo de tentar criar uma normalidade em um momento tão anormal, sendo que essa tentativa de normalidade gera e acentua as desigualdades. Então, acho que é um dever nosso, principalmente das instituições públicas, zelar por essas questões. Nós já vivemos muitas experiências que mostram que é possível, sim, retomar o semestre depois, conduzir os estudos. A pandemia não pode nos fazer obrigar os alunos a estudar de qualquer jeito.
Em relação à modalidade EAD na Educação Básica, acho ainda mais grave, pois se perde um momento importantíssimo na formação. Sou contra plenamente, especialmente na Educação Infantil e nos primeiros anos do Ensino Fundamental. Até acho que no Ensino Médio seria possível flexibilizar um pouco mais, mas acho que não no Ensino Fundamental e na Educação Infantil é inviável. No limite, penso que seria interessante fazermos atividades de sala de aula invertida, ensino híbrido, mas sempre resguardando a importância da sala de aula. Infelizmente, no Brasil, até mesmo pelas posturas do Ministério da Educação, algumas ações como o ENEM vêm sendo mantidas. E a gente espera que a mobilização, a indignação da sociedade em relação a isso também possa ajudar a não acentuar as desigualdades.


Referências

Do autor:
LIMA, Douglas Mota Xavier de; DIAS, Gustavo Magave. Ceuta e Alfarrobeira: informação e diplomacia no século XV. Cadernos de Pesquisa do CDHIS, Uberlândia/MG, v.30, n.1, p.154-181, jan./jun. 2017. Disponível em: http://www.seer.ufu.br/index.php/cdhis/article/view/40849/21550
LIMA, Douglas Mota Xavier de. A diplomacia portuguesa quatrocentista: notas historiográficas. In: RIBEIRO, Maria Eurydice de Barros; FRANÇA, Susani Silveira Lemos (Org.). A escrita da história de um lado a outro do Atlântico. 1ed.São Paulo: Cultura Acadêmica, 2018, p. 251-269. Disponível em: https://www.culturaacademica.com.br/catalogo/a-escrita-da-historia-de-um-lado-a-outro-do-atlantico/
LIMA, Douglas Mota Xavier de. Uma História contestada: A História Medieval na Base Nacional Comum Curricular (2015-2017). Anos 90 (ONLINE), PORTO ALEGRE/RS, v. 26, p. 1-21, 2019. Disponível em: https://seer.ufrgs.br/anos90/article/view/87750
LIMA, Douglas Mota Xavier de. Regal cerimonies and diplomatic practices. Contributions from the travel narratives from the 15th century. In: MONTES, Néstor Vigil (Org.). Comunicación política y diplomacia en la Baja Edad Media. 1ed.Évora: Publicações do CIDEHUS, 2019, v. 1, p. 1-30. Disponível em: https://books.openedition.org/cidehus/6784

Sugestões de leitura:
ARRUDA, E. P. Ensino e aprendizagem na sociedade do entretenimento: desafios para a formação docente. Educação, Porto Alegre, v.36, n.2, p.232-239, maio/ago. 2013.
BILLORÉ, Maïté; SORIA, Myriam (Dir.). La Rumeur au Moyen Âge. Du mépris à la manipulation. Ve-Xve siècle. Rennes: Presses Universitaires de Rennes, 2011.
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1 Mestrandas do Programa de Pós-graduação em História Social da Universidade Federal Fluminense (PPGH-UFF) e integrantes do núcleo de pesquisa Translatio Studii: Dimensões do medievo – UFF.

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