Translatio Entrevista - Dominique Vieira Coelho dos Santos (FURB - Universidade Regional de Blumenau)

Prosseguindo com a série Translatio Entrevista, apresentamos, a seguir, a entrevista que os integrantes do Translatio Studii Hayanne Porto Grangeiro e Luan Morais realizaram com o Prof. Dr. Dominique Vieira Coelho dos Santos (FURB - Universidade Regional de Blumenau).



AS PRODUÇÕES LITERÁRIAS MEDIEVAIS IRLANDESAS E SÃO PATRÍCIO: ENTREVISTA COM DOMINIQUE VIEIRA COELHO DOS SANTOS

Concedida a Hayanne Porto Grangeiro e

Luan Morais[1]


Dando continuidade à série de Literaturas Medievais iniciada no ano de 2020 a partir do episódio “Literatura medieval: entre o oral e o escrito” do Translatio Cast, buscaremos aprofundar nesta entrevista algumas reflexões e questionamentos a respeito da produção literária medieval mais específica: a literatura hagiográfica. E, dialogando com o recém lançado episódio “Literatura hagiográfica, relíquias e santidades” (01/03/2021), aqui contaremos com a contribuição do Professor Dominique Vieira Coelho dos Santos e os seus conhecimentos sobre literatura medieval irlandesa e a figura de São Patrício.

Antes de prosseguir à entrevista, cabe-nos uma rápida contextualização sobre o panorama literário na Irlanda Medieval. Conhecida por possuir o corpus documental vernacular mais antigo da Europa Ocidental, a Ilha Esmeralda ainda é pouco conhecida na medievalística brasileira e sua produção cultural, bem como literária, ainda é comumente reduzida à figura de São Patrício. Embora este tenha sido responsável pela produção dos primeiros documentos escritos na Ilha – sua Confissão e sua Carta aos soldados de Coroticus, ambas do século V –, o quadro narrativo e literário da Irlanda é permeado por um vasto número de produções e gêneros que abrangem desde a vida dos santos e santas vinculados à ilha, bem como crônicas, pseudo-história, eulogias, sagas e mitos, tendo inicialmente estas obras circulado pela via oral e posteriormente compiladas em registros bilíngues (latim-irlandês antigo) entre os séculos VI-XII. Logo, essa variabilidade de temas e objetos salta aos olhos dos pesquisadores interessados em conhecer um pouco mais sobre a Ilha Esmeralda durante o medievo. Esperamos que a entrevista a seguir aguce interesses prévios, aprofunde reflexões em curso e que auxilie na difusão do conhecimento histórico e suas relações com a literatura na produção da pesquisa científica.

 

Apresentação:

Dominique Santos possui Graduação, Mestrado e Doutorado em História pela Universidade Federal de Goiás (UFG), com período sanduíche na University College Dublin (UCD), Irlanda. Colaborou com o Projeto São Patrício, da Academia Real Irlandesa (www.confessio.ie). Foi pesquisador visitante no Centro de Estudos sobre Antiguidade Tardia da Universidade de Oxford, Inglaterra, onde fez estágio de Pós-Doutoramento. Foi pesquisador da Cátedra de Estudos Irlandeses W.B. Yeats, da Embaixada da Irlanda/USP (2014-2017). Além do Insulæ – Grupo de Estudos sobre Britânia, Irlanda e Ilhas do Arquipélago Norte na Antiguidade e Medievo, é membro do LEIR – Laboratório de Estudos sobre o Império Romano, da USP, e do Mithra – Laboratório de História Antiga Global, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). É Professor da FURB – Universidade de Blumenau, na qual leciona História Antiga e Medieval e coordena o LABEAM – Laboratório Blumenauense de Estudos Antigos e Medievais. Suas pesquisas estão voltadas para as seguintes temáticas: Ordem Social e Fronteiras nos anos finais do Império Romano; Celtas-Celticidade-Celtologia; A relação entre História Antiga, Teoria da História e História da Historiografia; Ensino e Pesquisa de História Antiga no Brasil.

 

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Translatio Studii: Considerando a sua formação e especialização na área de História Antiga, qual foi o seu primeiro contato durante a trajetória acadêmica com obras literárias medievais?

Dominique Santos: Meu primeiro contato se deu ainda no segundo ano da Graduação, quando tive a oportunidade de ter tido aulas de História Medieval com a excelentíssima professora Dulce Oliveira Amarante dos Santos, mas também algumas conversas com as, igualmente competentes, professoras Renata Cristina Sousa Nascimento e Armênia Maria de Souza, todas professoras da UFG – Universidade Federal de Goiás. A primeira me apresentou à historiografia francesa sobre Idade Média e, com ela, algumas de suas principais documentações. Além disso, também fui apresentado aos trabalhos do professor Hilário Franco Júnior, da USP, sobretudo “Cocanha. A História de um país imaginário”. As duas últimas me fizeram notar o que se fazia na Península Ibérica, tanto em Portugal quanto na Espanha. Além disso, considerando o que eu já havia visto em filmes, em jogos de RPG, vídeo games e coisas do tipo, a primeira aula de História que eu vi na Universidade foi a da Renata e versava sobre “povos bárbaros”, o que contribuiu ainda mais para aumentar minha curiosidade sobre o tema. Na ocasião de minha Graduação também, ali pouco depois dos anos 2000, o mesmo Hilário Franco Júnior havia acabado de traduzir para o português a Legenda Áurea, uma reunião de biografias de santos escritas no século XIII por Jacopo De Varazze. Nesta obra, por exemplo, há uma pequena vida de Patrício e foi a partir dela que comecei meu contato direto com a Irlanda. Como disse, eu já tinha algum interesse pelo tema da “barbárie” e, pelo menos na ocasião, eu imaginava que esses povos eram muito diferentes dos romanos e era justo isso que me chamava atenção. Eu havia lido que os Celtas saquearam Roma em 389 A.E.C. e então fiquei interessado em saber mais sobre esse povo específico. Na época, não havia quase nada em português disponível fisicamente nas bibliotecas e não tínhamos possibilidades como Sci-hub, Libgen dentre outros mecanismos incentivadores da ciência de acesso livre. Pegávamos uma van na UFG, que deixava Goiânia por volta das 6:00 da manhã, e íamos até a UNB, tanto para consultar algumas obras específicas disponibilizadas somente naquela biblioteca quanto para acessar o Jstor, uma ferramenta importante de pesquisa. Das leituras possíveis na época, consegui reunir o interesse em “barbárie”, “celtas” e Irlanda e começar a desenvolver alguma pesquisa. Não me recordo ao certo, mas por compromissos institucionais, as professoras Dulce e Armênia tinham se ausentado para qualificação, e eu tinha apreciado muito as aulas de História Antiga com a professora Ana Tereza Marques Gonçalves e por isso fui falar com ela sobre pesquisa.  Ela foi uma grande incentivadora e me emprestou sua cópia da Legenda Áurea, que o Hilário tinha traduzido, como mencionei, me dizendo que ali na vida de Patrício, de certa maneira, existia uma relação entre Patrício e Roma. Assim dei início aos estudos, com o século V. Me tornei um especialista em Antiguidade Tardia, então. Fiz Graduação, Mestrado e Doutorado sobre esse período. Me interesse nunca foi exatamente pela literatura hagiográfica, mas por ordens sociais e fronteiras no Império Romano, linha de pesquisa da qual faço parte do Laboratório de Estudos Sobre o Império Romano, da USP, desde 2006. O Programa de Pós-Graduação da UFG era sobre Culturas, Fronteiras e Identidades, a linha de pesquisa da qual eu fazia parte era sobre História, Memória e Imaginários Sociais, além de ser uma Graduação e um PPG muito forte em Teoria da História e História da Historiografia. O contato com a literatura medieval veio a partir desses entrelaçamentos. 


Translatio Studii: Em especial, como poderia caracterizar a produção literária proveniente da região da atual Irlanda neste período de transição entre Antiguidade e Medievo?

Dominique Santos: Caracterizar o período que vai do século V ao XII na Irlanda como de transição entre Antiguidade e Medievo é interessante, pois nos permite repensar essas balizas cronológicas. Sabemos que as historiografias possuem distintas nuances de lugar para lugar e as cronologias, propostas de sincronização e periodização também mudam. Foi exatamente isso que levou Arthur Assis e Bernardo Ferreira, no prefácio que escreveram para a obra em português “História de Conceitos”, de Reinhart Koselleck, a pontuarem que não temos em nosso idioma uma palavra correspondente à “Frühe Neuzeit”, que eles traduziram por “Alta Idade Moderna”. É o período que o mundo anglo-saxão denomina de “Early Modernity” ou “Early Modern Period”. Situação semelhante ocorre para o contexto irlandês. Foi sobre isso que tratamos Elaine Pereira Farrell e eu em certa ocasião, quando mostramos que na historiografia irlandesa os termos, em inglês, “Early Irish Society”, “Ancient Ireland”, “Early Christian Ireland”, “Ireland in Late Antiquity” e “Medieval Ireland” se confudem. Na obra organizada por Dáibhi Ó Cróinín, por exemplo, “A New History of Ireland”, a etapa relacionada com História Antiga, denominada de “Prehistoric and Early Ireland” vai de 7.000 A.E.C até 1169 E.C. Já o segundo volume, que carrega Medieval no título, “A New History of Ireland: Medieval Ireland 1169-1534” aborda a partir do século XII, bem diferente, então, do que estamos acostumados no Brasil. Sem dúvida, no âmbito das formas, quem desejar pesquisar a documentação do período, terá que se perguntar sobre esse problema da periodização e, de igual modo, sobre a relação entre a Irlanda e a cultura céltica no período, pelo menos no que diz respeito à produção em língua irlandesa antiga, considerada uma língua céltica do ramo Goidélico, ou seja, a partir do som fonético /q/, diferente do galês, do ramo britônico, este em /p/. Por fim, também é válido questionar os limites da forma “literatura”, que usamos hoje, para contextos anteriores. Os primeiros escritos produzidos na Irlanda são as pequenas inscrições em monumentos de pedra conhecidos como Ogham Stones, contendo algumas frases curtas em Irlandês Antigo. Logo a seguir, temos, já no século V, as duas cartas de Patrício, agora em Latim, a Confessio e a Epistola (disponível em www.confessio.ie). Esses dois textos não são somente os primeiros que podemos debater se são “literários”, mas os primeiros de qualquer modo. Além das Ogham Stones não há outros textos do período que não esses, tanto em Latim quanto em Irlandês. O próximo texto que temos e o mais antigo em irlandês é o poema Amra Choluim Cille (Lamento por Colm Cille), composto por causa da morte de Colm Cille em 597. Isso significa que, desde o princípio, a “literatura” irlandesa jamais se restringiu a um só idioma. Ao contrário, ela combinava o hebraico, o grego, o latim e o irlandês, um programa “literário” variado, relacionando o letramento e a oralidade, e compondo a partir da tradição bíblica, clássica e céltica. Ou seja, era um programa “clássico”, mas também “classicista”, pois estudava a cultura clássica, mas também compunham, em irlandês, novos textos ressignificando os clássicos. É isso que ocorre com o Táin Bó Cúailnge, uma espécie de “Ilíada” irlandesa, com a Togail Troí, uma “tradução” da De Excidio Troiae Historia para o irlandês, a Scéla Alaxandair, contando as aventuras de Alexandre, e tantos outros textos. Helen Fulton chamou e Brent Miles ressaltaram a importância de observar essa relação entre as produções irlandesas, em diálogo com as tradições orais, e as obras clássicas. Miles chamou esse movimento de “Classicismo irlandês Medieval”. No que diz respeito aos textos em si, eram divididos em várias categorias. 

 

Translatio Studii: Dentre os diferentes gêneros literários manifestados na literatura medieval irlandesa, em quais são possíveis identificar uma presença/atuação maior de santidades nas narrativas?

Dominique Santos: Por volta já do século X, a produção era tamanha que era possível elaborar “listas” sobre ela. Em uma dessas listas havia 185 títulos divididos em categorias como “roubo de gado”, “galanteio”, “batalhas”, “terror”, “viagens”, “festas” e assim por diante. As narrativas consideradas “cristãs” e aquelas que alguns gostam de considerar “pagãs” se misturavam. Não por acaso, Jacques Le Goff, em “O Nascimento do Purgatorium” aponta que o Purgatorium, pelo menos enquanto um susbstantivo representativo de um lugar para onde se pode ir fisicamente nasce na Irlanda, no século XII, com o Purgatório de São Patrício (que viveu no século V, importante lembrar). Essa intersecção mostra que poderíamos dizer que há um gênero que hoje chamamos de “hagiográfico” em que há uma maior presença dessas narrativas de santidades. São relatos como a Vita Sancti Patricii, Vita Santae Brigidae, Vita Columba, dentre outras dezenas de “vidas” de “santos” e “santas”. Eu estudei um destes textos de forma mais detida, a Vita Sancti Patricii, escrita por Muirchú Moccu Machténi, a mais famosa e conhecida “Vida” de Patrício, em que aparece, pela primeira vez, por exemplo, a ideia de que Patrício morreu em 17 de Março, quando se comemora o “Dia de São Patrício”. O problema é que essas categorias “hagiografia”, “vita”, e assim por diante, não são as medievais. Suas classificações eram outras. É comum vermos entre os estudiosos das literaturas irlandesas medievais a divisão em “ciclos”. Em geral, em três grandes blocos: o primeiro deles contendo quatro ciclos textuais (Ulster, Feniano, Mitológico e Histórico); o segundo engloba aventuras, viagens e visões; o terceiro envolve a poesia. Manuscritos da própria Idade Média, no entanto, dividiam esses textos de maneira diferente. Dois deles, o TCD 1336 e o TCD 1339, por exemplo, se referem a uma “lista a”. Temos também uma “lista b” e uma “lista x”, disponíveis em outros manuscritos. No TCD 1336 e 1339 lemos que o poeta para ser qualificado deve saber narrar aos reis “trezentos e cinquenta contos, sendo, dentre estes, duzentos e cinquenta contos maiores e cem sub-contos”, o que não deixa de ser também uma forma de classificação. O Táin Bó Cúailnge é, por vezes, considerado como o principal texto do “Ciclo de Ulster”, para nós modernos, mas para os medievais ele era um dentre os tána (plural de táin). Ou seja, dentro da classificação medieval produzida no século XII, há a “lista a”, que tem dentro dela dezessete tipos de contos. Um desses tipos é a categoria de “roubo de gado”, em irlandês tána. Há na “lista a” dez tána, dentre os quais está o Táin Bó Cúailnge. A “lista b” apresenta 4 tána. Essa era a forma de classificação do período, que precisamos levar em consideração.

 

Translatio Studii: De uma perspectiva menos especializada, sabe-se que São Patrício teve uma forte relação com o processo de cristianização da Irlanda e permanece como uma grande figura simbólica da região com um dia de celebração próprio que mobiliza toda ilha a cada dia 17 de março. Você poderia comentar brevemente sobre este processo de cristianização na Irlanda e o papel desempenhado por Patrício nesta ocasião e se há alguma referência a este respeito nas obras produzidas por ele?

Dominique Santos: Dentre os textos que mais trabalhei, além da Vita escrita por Muirchú, estão os dois textos do próprio Patrício, a Confessio, uma defesa de algumas acusações e de que teria ido para Irlanda para ganhar dinheiro em nome da fé, considerada uma espécie de “autobiografia” ou uma “confissão”, mas que está mais para uma apologia pro vita sua, uma defesa de sua vida do que tendo um caráter confessional, interpretação que veio à tona, porque Patrício diz no documento, em algum momento, “essa é minha confissão antes de morrer”. O outro texto é uma carta que escreveu aos soldados de Coroticus tentando resolver alguns problemas envolvendo pirataria e rapto de pessoas, especialmente discípulos seus que estavam sendo raptados e vendidos como escravos aos Pictos ou mortos. Há também uma outra “vida de Patrício” escrita por Tírechán e o próprio Tratado do Purgatório. Nos textos de Patrício, que a historiografia irlandesa costuma considerar que foram produzidos pelo “real Patrick”, não há referências diretas a grandes milagres, apenas conversões, sonhos, mensagens divinas e coisas do tipo. Já nos textos posteriores, do século VII em diante, Patrício faz milagres, ressuscita mortos, se envolve em disputas mágicas e vence os “druidas” e, já no século XII, é feito personagem a adentrar fisicamente o purgatório após instruções particulares de Jesus Cristo, que vem à terra falar com ele e lhe dar um báculo. São textos diferentes de épocas também diferentes, por meio dos quais podemos identificar mudanças e permanências. O Patrício “histórico” ao qual a historiografia irlandesa se refere é o autor da Confessio e da Epistola. Diz-se que ele fez parte do início do processo de cristianização da Irlanda porque ele mesmo afirma isso nesses dois documentos e não temos outros anteriores. Há uma referência do ano 431 que diz que “Paládio foi enviado aos irlandeses que creem em Cristo”. Porém, essa única linha é o que temos. Então, tanto por conta do que o próprio Patrício escreveu, no século V, quanto dos textos hagiográficos produzidos posteriormente, a partir do VII, esse papel de cristianização é atribuído a ele. Vários métodos de conversão utilizados podem ser lidos no que o próprio Patrício escreveu: aprender o idioma local, viajar até diferentes partes do território, tentar converter os reis para que os súditos o acompanhem, discipular e batizar os já convertidos e assim por diante. Não é crível que Patrício tenha “cristianizado a Irlanda”, pois quando ele foi para a Ilha já havia contato entre a Irlanda e as outras regiões do Mar da Irlanda, com grande intercâmbio de bens e materiais e ideias, inclusive a menção a Paládio, e a Irlanda não se manteve isolada. A prova disso é que o próprio Patrício acusa Coroticus de vir da Britânia, raptar cristãos na Irlanda e vende-los aos Pictos da região da atual Escócia, sendo que poderia vende-los aos Francos, dos quais poderiam ser adquiridos de volta por Patrício com pagamento em moedas ouro, ao ponto que os Pictos costumavam, segundo Patrício, matar esses cristãos. Isso mostra a conexão entre quatro lugares diferentes, no mínimo: Britânia, Escócia, Irlanda e a terra dos Francos. É preciso compreender a “cristianização” como processo, que, inclusive, jamais terminou. É importante lembrar também que a Irlanda tem três “padroeiros”, sendo Santa Brígida e São Columba os outros dois, embora Patrício seja mais conhecido e, por conta de diversas ressignificações modernas, tornou-se praticamente um sinônimo de Irishness, a Irlancidade.    

 

Translatio Studii: Para finalizarmos, qual seria, na sua opinião, a importância do uso do material literário (oral e escrito) para a realização de pesquisas na área de História?

Dominique Santos: A Ciência da História também produz narrativas. A História não se confunde com a Literatura porque há algumas etapas que a primeira precisa desempenhar e que a segunda não. Por exemplo, é obrigatório para a História a “operação historiográfica”, sobretudo a pesquisa empírica documental. Da forma como nos chegam, os fragmentos do passado são caóticos e desorganizados, não tem uma coerência interna, assim, precisam ser, então, agrupados, ordenados e sistematizados em uma narrativa plausível e coerente, que a narrativa historiográfica se encarregará de produzir. É somente por meio desta sistematização narrativa que esses fragmentos entram em uma ordem. O que será narrado, então, está condicionado à existência de relações políticas, econômicas e sociais que não dependem da imaginação do historiador para existir, pois não dependem de textos. Diversos autores, como Hayden White, Jörn Rüsen e Luís Costa Lima, para citar apenas alguns, têm refletido sobre tais questões. Há diversas razões para alguém da área de História estudar o material literário, que pode ser uma fonte riquíssima para a pesquisa historiográfica, pois, como sabemos, para haver História é preciso que haja uma problematização. A mera descrição de algo que tenha ocorrido em outro tempo ainda não é História propriamente dita. Os indícios e fragmentos do passado, se devidamente indagados, permitirão a elaboração de narrativas historiográficas. Nesse sentido, qualquer registro da presença humana poderá ser convertido em fonte para a História. Cada tipo de registro permitirá abordagens distintas, pode incentivar formas variadas formas de perguntas e é capaz de proporcionar conhecimentos diferentes da realidade. A literatura, dessa forma, nos permite acessar certas dimensões que, certamente, são diferentes da numismática, por exemplo. Independentemente de serem ficcionais ou não, a obra literária nos permite problematizar as “formas de sentir e pensar”, “as práticas culturais”, “os imaginários” de determinada época e contexto. O material literário, então, é de grande utilidade para a História seja como fonte para compreensão do período em que foi produzido seja para pensar em questões como essas que eu mencionei, de caráter mais teórico e metodológico.

 

Referências

Do autor:

ASSIS, Arthur Alfaix; FERREIRA, Bernardo. Histórias de conceitos (Reinhart Koselleck). Rio de Janeiro: Contraponto, 2020 (Revisão técnica de tradução).

FARRELL, Elaine; SANTOS, Dominique. Early Christian Ireland - Uma reflexão sobre o problema da periodização na escrita da História da Irlanda. In: BAPTISTA, L. V.; SANT'ANNA, Henrique Modanez de; SANTOS, D. V. C. (Orgs.). História antiga: estudos, revisões e diálogos. Rio de Janeiro: Publit, 2011, p. 185-213.

FRANCO JÚNIOR, Hilário: Cocanha: a história de um país imaginário. São Paulo: Cia. das Letras, 1998.

FULTON, Helen. History and historia: uses of the Troy story in medieval Ireland and Wales. In: O’CONNOR, Ralph. (ed.). Classical Literature and Learning in Medieval Irish Narrative. Studies in Celtic History XXXIV. Cambridge: D. S. Brewer, 2014.

LE GOFF, Jacques. O nascimento do Purgatório. 2. ed. Lisboa: Estampa, 1995.

LIMA, Luiz Costa. A aguarrás do tempo. Rio de Janeiro: Rocco, 1989. p. 17.

MILES, Brent. Heroic Saga and Classical Epic in Medieval Ireland. Cambridge: D. S. Brewer, 2011.

RÜSEN, Jörn. História Viva. Teoria da História: formas e funções do conhecimento histórico. Trad. Estevão de Rezende Martins. Brasília, DF: Editora Universidade de Brasília, 2010.

SANTOS, Dominique.; FARRELL, Elaine. Táin Bó Cúailnge - Um Épico Irlandês. In: Dominique Santos. (Org.). Grandes Epopeias da Antiguidade e do Medievo. 1. ed. Blumenau: Edifurb, 2014, p. 220-241.

VARAZZE, Jacopo. Legenda Áurea: vidas de santos. Tradução Hilário Franco Júnior. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.

WHITE, Hayden. Trópicos do Discurso: Ensaios sobre a crítica da cultura. São Paulo: Edusp, 2001.

 

Sugestões de leitura:

BHROLCHÁIN, Muireann. An Introduction to Early Irish Literature. Dublin: Four Courts Press, 2009.

SANTOS, Dominique. Seanchas - an important Irish tradition related to memory, history and historiography. OPSIS, v. 18, p. 44-60, 2018.

SANTOS, Dominique. As narrativas ‘Célticas’ de viagem para o outro mundo (Echtra; Immram; Longes e Fís): fontes históricas para uma história cultural da Irlanda antiga e medieval. Saeculum, v. 38, p. 65-84, 2018.

SANTOS, Dominique Vieira Coelho dos. A tradição clássica e o desenvolvimento da escrita vernacular na Early Christian Ireland: algumas considerações sobre a matéria troiana e a Togail Troí. História e Cultura, v. 5, p. 93-110, 2016.

SANTOS, Dominique; FARRELL, Elaine. A importância do estudo das supostas periferias: a contribuição da Irlanda para a medievalística brasileira. Revista Diálogos Mediterrânicos, v. 11, p. 177-193, 2016.



[1] Hayanne Porto Grangeiro é Mestre em História pelo Programa de Pós-graduação em História Social da Universidade Federal Fluminense (PPGH-UFF) e Luan Morais é Doutorando pelo mesmo programa. Ambos integram o núcleo de pesquisa Dimensões do Medievo – Translatio Studii (UFF) e o Grupo de Estudos sobre Britânia, Irlanda e Ilhas do Arquipélago Norte – Insulæ.

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